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NOSSAS BARRAGENS DE LAMA

No dia 5.11.2015, uma gigantesca barragem de rejeito de minério de ferro se rompeu espalhando mais de 50 milhões de metros cúbicos de uma lama fétida e tóxica por mais de 700 quilômetros entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo, destruindo por completo 2 cidades e causando danos irreparáveis em mais de 228 municípios, além do Rio Doce e seus afluentes, até chegar ao Oceano Atlântico. É a maior tragédia ambiental brasileira de todos os tempos e o mais grave acidente da história da mineração mundial (sem precedentes).

Anos depois, os atingidos diretos ainda lutam diariamente pela reconstrução de suas vidas, mas os atingidos indiretos parecem seguir adiante. Este não é um problema apenas de uma empresa ou de quem foi atingido diretamente. É uma tragédia de todos nós. Atingidos direta ou indiretamente por essa lama, estamos todos de alguma forma conectados a um modo de vida que permite que coisas como essa não só aconteçam, como voltem a acontecer.

Nossa memória é curta. A dor do outro dói, mas não paralisa, não mobiliza uma mudança na nossa própria vida. As barragens que se romperam são resultado de um modelo que extrai recursos finitos e como consequência cria estes enormes tanques lotados de resíduos, uma espécie de aterro que ficaria ali cheio para sempre. A maioria de nós, na busca incessante pelo enriquecimento, toma decisões que criam, pouco a pouco, nossas próprias barragens cheias de lama. Sabemos que ela ali se acumula, mas torcemos para que ela nunca escorra, não transborde. Assim como a Samarco/Vale/BHP, sabemos que nosso plano de contingência é falho ou muitas vezes inexistente, o que faria esse rompimento ser doloroso e prejudicial a todos ao nosso redor.

sobre humanizar
Nosso Modelo
Sobre Humanizar

Os filhos da mineração somos todos nós. Batalhamos, estudamos, trabalhamos e conquistamos coisas. Enchemos o peito para justificar que nosso mérito é suficiente, que um esforço pessoal justificaria os fins. Ficamos honrados quando uma grande empresa ou um projeto ego-inflante parece nos querer, nos engrandecer. E enquanto engrandecemos, construímos e preenchemos nossas próprias barragens cheias de lama fétida. Escolhemos a ignorância sobre o que está por trás do nosso estilo de vida. Não perguntamos de onde vem o dinheiro que compra nosso pão pois sabemos que a resposta exigiria uma ruptura, meia volta, uma queda nos padrões de vida tão arduamente conquistados. Também não nos perguntamos o que acontece com as coisas depois que passam por nós, nossos lixos, rejeitos e impactos. Debochamos de nós mesmos e uns dos outros para evitar qualquer reflexão que possa nos desestabilizar, que impeça ou questione a visão voltada ao ascendente. O fim justifica os meios, mas hoje nem os fins nem os meios se justificam.Quase um ano depois, os atingidos diretos ainda lutam diariamente pela reconstrução de suas vidas, mas os atingidos indiretos parecem seguir adiante. Este não é um problema apenas de uma empresa ou de quem foi atingido diretamente. É uma tragédia de todos nós. Atingidos direta ou indiretamente por essa lama, estamos todos de alguma forma conectados a um modo de vida que permite que coisas como essa não só aconteçam, como voltem a acontecer.

Falamos em humanizar as coisas, mas esquecemos que o Rio Doce estava muito bem antes de humanizarmos seu leito. Precisamos transformar o que é ser humano antes de sair humanizando as coisas por ai. Quem não está bem, dificilmente pode cuidar muito bem do outro. Não me considero um jornalista humanista, não gosto do termo. Eu não gosto de ser humano. Já vi muitas das coisas que ele fez por ai. O ser humano é retratado na ficção como um parasita que extrai todo o recurso de um lugar antes de se mudar para o próximo. É um ser que se adapta, mas para se adaptar, faz concessões e sobrevive em detrimento da estabilidade do meio ambiente no qual se insere. É criativo e capaz de quase tudo, mas nesse processo fica mais encantado com o que é capaz de fazer do que com o valor que gera para o ecossistema do qual faz parte. O termo humano ainda cumpre seu papel na intenção, no direcionamento, mas na prática estamos longe de poder se vangloriar do que a nossa espécie tem feito por ai.

av.paulista
E se a barragem ficasse na Av. Paulista

Se a barragem ficasse no final da Avenida Paulista e tivesse se rompido em direção a rua da Consolação, teria arrancado tudo que estivesse até o sétimo andar de qualquer prédio, com sua onda inicial de aproximadamente 20 metros, pelos 3 quilômetros de extensão da avenida. Teria coberto a escadaria da Gazeta e entrado em todas as salas, arrastando estudantes, cadeiras, mesas, lousas, paredes e o que mais estivesse no caminho. Os 8 metros de altura do vão livre do Masp não seriam páreos para os mais de 50 milhões de litros de lama fétida que manchariam obra por obra do acervo e das exposições ativas, escorrendo pelo vão até chegarem a 9 de julho, sem praticamente perderem força alguma no caminho.
A lama seguiria a todo vapor pela Avenida Paulista, arrebentando o vidro das estações de metrô, se infiltrando uma a uma, sufocando os milhares de passageiros até obstruir completamente as entradas e saídas, sufocando aqueles que sobreviveram a primeira enxurrada de lama. Seguiria destruindo o bairro do jardins inteiro — quase sem querer — ao escorrer pela Pamplona, Eugênio de Lima e outras afluentes da região, escoando realmente sua porção mais robusta de lama pela Avenida Rebouças depois de ter destruído o conjunto nacional em praticamente todos os seus andares — nesse momento lama esta já carregada com os quase 1,5 milhão de pessoas que frequentam a região por dia.
A enxurrada de lama fétida, neste momento com corpos, carros, mesas, sanduíches e alimentos dos restaurantes, bicicletas, semáforos, ferros, portas, janelas, ternos, gravatas, bermudas, maços de cigarro, skates, computadores e eletrônicos, bancas de revista, vidros, galhos, lâmpadas, obras dos artistas de rua, antiguidades e a estrutura das barracas, xícaras de café, malas, máquinas fotográficas e muitas coisas mais, ganharia força ao descer a Avenida Rebouças estraçalhando passarelas, pontos de ônibus e tudo pelo caminho, dos jardins até a região de Pinheiros até chegar no Rio Pinheiros, infiltrada por cima e por baixo da ponte Eusébio Matoso.
A lama teria levado os produtos mais caros da rua Oscar Freire, bem como vários postes e bancos do boulevard. Teria juntado os ricos e os pobres no mesmo caos, arrastados sem diferenciação os donos dos carros mais caros com os importantes carroceiros que nada poderiam ajudar frente a essa enxurrada de lixo. A lama teria levado os que se amam e os que se odeiam; os mais velhos e as crianças, seus pais, seu filhos seus brinquedos favoritos e até aqueles que você nem gosta tanto. Levaria o celular que estava no seu bolso e aquele computador caríssimo que deixou em um lugar seguro para não estragar. Destruiria suas melhores e mais caras roupas, e inclusive sua blusa rasgada.
Antes de chegar ao rio Pinheiros, a onda de lama se infiltraria pelo piso térreo do Shopping Eldorado, estourando vidros e arrastando pessoas. A lama subiria pelos caixas do Carrefour, destruindo as gôndolas do supermercado inteiro e jogando produtos de todas as seções no rio de lama. Quebraria as vitrines das lojas e arrancaria os quiosques expositivos, com as pessoas correndo desesperadas para os andares mais altos e observando a lama entrando com força e saindo carregada de objetos e corpos. Aos que se refugiaram no estacionamento, estes seriam levados juntos com muitos carros diretamente pela marginal até entrarem no curso do rio Pinheiros.
Pelo rio, destroçaria o entorno da marginal, como os trilhos do trem e a pista de bicicleta. Engoliria os carros que ainda não estivessem informados sobre o que estava acontecendo até chegar ao rio Tiete e seguir seu rumo até a barragem de Jupiá, no rio Paraná, para virar energia suja e contaminar tudo ao seu redor. E ironicamente, com a vida destes rios não teríamos que nos preocupar porque já o matamos em outro momento, antes dessa nova catástrofe acontecer.
Descendo o Rio Paraná, a lama reduziria a quantidade de oxigênio disponível na água e intoxicaria todo o ecossistema que já não tivesse sido morto pela força da enxurrada ou pelo rejeitos do minério. Em seu percurso, deixaria um rastro de toneladas de peixes e animais mortos, até se encaminhar para a foz do Iguaçu e se dispersar pela tríplice fronteira dividindo os danos com Paraguai e Argentina. Nesse caminho, já teria afetado as comunidades ribeirinhas dos estados de São Paulo, Mato Grosso e Paraná e afetados pelo menos 6 hidrelétricas no caminho.
Se tudo isso tivesse acontecido na Av. Paulista, teria arrastado nossas melhores memórias paulistanas, muitas de nossas casas, trabalhos e espaços de lazer.
Teria levado nossa história, nossas vitórias e derrotas na cidade, nossos amigos e familiares com suas próprias histórias e conquistas. Seríamos obrigados a nos abrigar no interior, em outros bairros, em regiões pouco familiares ao nosso estilo de vida e estaríamos nas mãos de pessoas que não nos conhecem e que de alguma maneira fizeram parte desta destruição. Ficaríamos indignados, putos, por ninguém ter nos avisado dos riscos e não ter soado uma porcaria de um aviso, uma sirene, para que a gente pudesse salvar as pessoas e coisas que amamos, que construímos com suor.
Tempos depois, com a lama endurecida, endurecidos ficaríamos. Seríamos colocados em uma situação paradoxal na qual para dar sequência a nossas vidas, teríamos que retomar o mesmo modelo fracassado, por falta de uma alternativa melhor ou por falta de uma estrutura para transformar o ciclo ao qual estávamos e estaremos presos.
Teria sido um grande baque em nossas vidas, teria importado, seria importante no mundo e seria impossível de esquecer.

OBS:Este texto foi escrito em 2016 é uma homenagem aos atingidos direta e indiretamente pelo rompimento das barragens da Samarco/Vale/BHP Billion em 5.11.2015 e uma singela tentativa de gerar empatia sobre o que pode ter sido a sensação de ter sido atingido diretamente por um modelo fadado ao fracasso.

#barragem #brumadinho #vale #valenada #naoesqueçamariana #aliançapeloriodoce

 

A exposição Nossas Barragens aconteceu no mês de Outubro e Novembro de 2016, no Conjunto Nacional na Av. Paulista.

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